O beijo...
Tudo
começou com a voz rouca e decisiva do pai de Maria do Carmo: “Anda menina, só
vive dentro de casa, vai para a praça, vê se arranja um namorado!”.
Éramos
cinco rapazolas e assoviávamos o vento dentro de nós como na historieta de
Galeano, mas a exclamação do patriarca furtou o nosso sossego, carregando-nos
numa ventania ardida e com apenas uma certeza: a Carminha ia namorar naquela
noite e poderia ser com um de nós...
Eu
nunca tinha namorado, sequer tinha dado um beijo. Shakespeare diz que “os
loucos não possuem orelhas”, mas foram elas que me trouxeram o desvario, em
poucos segundos sentia-me um cavalheiro galante, munido dos melhores versos e
gracejos. Era só fechar os olhos e já tinha comigo os lábios e o encanto de
Carminha.
Engraçado,
bastou uma frase perdida e Maria do Carmo tornou-se mais bela do que a Beatriz
de Dante, nem precisava percorrer círculos e valas do inferno, nem recintos do
purgatório. Ela já estava no jardim, sentada no banco da praça, há poucos
metros dos nossos olhos enfeitiçados.
Naquele
tempo era difícil conseguir uma namorada, precisávamos de algum trunfo. Fomos
para minha casa, lembrei que minha mãe fabricava perfumes e, agindo como se
fosse um alquimista, apanhei uma “essência” com aroma de maçã verde. Estávamos
impecáveis, nossas camisas estavam meticulosamente manchadas com aquele líquido
gorduroso, transpirando um cheiro açucarado e perfeito.
Gibran
diz que escolhemos nossas alegrias e nossas tristezas muito tempo antes de
experimentá-las. Todavia, nem sempre as profecias se cumprem quando dependemos
da escolha de outrem. Não fui o escolhido de Carminha.
Shakespeare
também diz que, pisado, “o menor verme se revira”. Quantas vezes eu me revirei
naquela noite quando o meu primo chegou até nós com um sorriso exagerado na
face e levantando cinco dedos diante de nós. Quando perguntávamos com
insistência os detalhes do encontro ele apenas conseguia erguer a palma de sua
mão, como se estivesse erguendo o seu brio imponente e nós, pobres desventurados,
assistíamos sua glória com os nossos desejos asfixiados. Depois de alguns
minutos de suspense, finalmente falou: “Dei cinco coladas!”.
Mal
consegui dormir nesta noite e noutras também, ainda sentindo e doendo o cheiro
da maçã verde que me perseguia. Ainda na garganta as minhas eternas juras de
amor, apenas via a menina que deveria ser o meu primeiro amor, do meu primeiro
beijo, dando “cinco coladas” em outro pretendente.
Quintana
disse que “não há nada como um pé depois do outro”. Após alguns anos encontrei
Maria do Carmo em uma matinê de domingo. Cortejei-a e, propositalmente, suguei
o máximo que pude o seu belo sorriso e beijei-a até não poder mais caber nos
dedos as inúmeras “coladas”. Porém, tudo foi inútil, eu já não tinha comigo a ventania
de antes, já tinham carregado minha inocência e o rubor do primeiro beijo, da minha
primeira colada.