Marcos Cesário

Do outro lado, de outra janela...


"Um casamento não é um acordo entre duas cabeças, mas entre dois corações".
(Schopenhauer)
Tia Aldé, tio João, estou decidido a escrever algo para vocês. Estou decidido a falar de um tipo de amor que nunca vivi, mas que tenho o prazer de saber que existe e está perto. Está há mais ou menos 100 km de mim neste momento. Existe.
Tio, tia, eu não sei se já consegui transmitir, em palavras, meu encantamento com o amor que vocês cultivam debaixo do clima confuso da realidade e das adversidades, da rotina e dos dias que dissolvem quase tudo que foi prometido ao corpo crente dos jovens amantes. Sim, ainda sou jovem, 37 anos, mas conheço a rotina. Atravessei dois casamentos acreditando no infinito amor, e ainda acredito, assim como também acredito em diversas formas de amar o amor. Mas, mesmo reconhecendo, não conheço a forma de amar que vocês respiram. Como vocês conseguem cultivar a ternura depois de 42 anos de vida compartilhada, criar seus três filhos e acordar com fôlego suficiente para darem uma bitoca no café da manhã?
Ano passado eu estava com um dos seus filhos, Evódio, e falávamos sobre amor e casamento. E sabemos, por testemunharmos com infelicidade e cinismo, que nem sempre estas duas coisas amor e casamento se reconhecem debaixo do mesmo teto. Fui à casa de Evódio e Elcione duas ou três vezes e tive a impressão de que naquele lar havia uma batalha justa pela busca de um amor belo. Acho que vão conseguir continuar respirando juntos. Mas, foi o próprio Evódio que reconheceu o cume deste amor que tento em vão descrever: “O amor de meus pais é uma meta difícil até para mim...”. Acredito, primo. Acredito.
Outro dia eu estava com Wilson, o filho caçula de vocês. Falando também de amor, ele me disse: “Desde que me entendo por gente nunca vi meus pais discutirem, nunca!”. Sei que Jó (Joalde),o filho do meio, me diria a mesma coisa.
Tia Reina, lembrei de você na cozinha de tia Aldé, chorando enquanto ria e repetia que, só agora, depois de perder o homem que lhe deu tanto amor, entendia aquela frase que achou um dia em uma figurinha: “Amar é nunca ter que pedir perdão...”.  Me disse com convicção: “Agora entendo... Amar é nunca magoar ao ponto de precisar pedir perdão...”. Eu, tia Reina, já magoei tanto quem me amava que mesmo tendo pedido perdão a quem magoei nunca poderei me perdoar.
Há uns cinco anos, eu estava sentado na cozinha da residência de meus tios. Tio João, depois do rompimento de mais um casamento meu, repetiu o mesmo conselho que me deu no rompimento do meu primeiro casamento: “Volte para sua esposa, filho, volte...”. Tio, o amor que você e tia Aldé têm não é uma opção é um dom. É um milagre. Se eu tentasse voltar nem eu nem as mulheres que amei estaríamos lá. No amor real é assim: ou se fica mal ou vai menos convicto e magoado, mas vai. No mundo real dos relacionamentos amorosos é assim. Mas como você e tia Aldé podem saber? Vocês nunca vão saber. Morrerão sem saber. Vocês morrerão renascendo um dentro do outro.
Tia Aldé, um dia ouvi você dizer: “Por trás de um grande homem não está uma grande mulher, não. Ao lado de um grande homem há uma grande mulher!”. Sim, tia, assim também dizia Exupéry: “Amar não é olhar um para o outro. É olhar juntos na mesma direção”. E para olhar assim tão juntos não podemos estar nem na frente e, tão pouco, atrás de quem amamos. Isto eu sei.
A poeta russa, Tsvetaeva, amando o homem que nunca conheceu pessoalmente, o mestre alemão da poesia, Rilke, disse-lhe num trecho de uma das suas oníricas cartas: “Rilke, quando penso em você não vejo uma cama. Vejo uma janela”. Tio João, tia Aldé, é assim que vejo o amor de vocês. Vejo vocês dois debruçados, um ao lado do outro, na mesma janela, reinventando as estações que passam sempre pela mesma paisagem. Eu estou em outra janela agora, diferente, com outra vista, outras dúvidas e poucas certezas... Mas, das poucas certezas que tenho está a de reconhecer o milagre do amor. Reconheço o milagre do amor de vocês, assim como reconheço a insuficiência destas minhas vacilantes palavras que são apenas uma tentativa de compartilhar o mistério silencioso e vivo de um amor. O amor de vocês.